“Eu gosto de ter o André como agente de viagens”
por Marcos Cruz link

O meu interesse pela pintura do André Gigante precede a pintura, tem a ver com a sua predisposição para o mergulho a fundo na autodescoberta. É isso, sobretudo, o que lhe anima o gesto, a vontade de caminhar rumo ao que não conhece, de pintar, e não fintar, o destino, sem determinismos herdados nem rupturas radicais com o passado. Pelo contrário, há nele uma consciência tranquila do que outrora lhe retirou a leveza de movimentos que hoje exprime e cultiva, tanto assim que não se lhe percebe, nos quadros desta exposição, a mínima animosidade contra esse lastro de noções e conceitos a que deixou de se sentir vinculado. É como se andasse no encalço de uma paz com os três tempos da vida, convocando todos ao papel onde ele mesmo se desenha enquanto obra, uma obra viva, aberta e tendencialmente livre. Porém, do mesmo modo que a pintura, a liberdade não me parece ser, para o André, um fim em si mesma. É, aliás, a pintura que o indicia, ao montar-se na liberdade e viajar com ela por paisagens que lhes vão aparecendo à frente. São horizontes, mais do que destinos, e todos sabemos que nenhum horizonte é o último. Por isso, quando vemos essas paisagens plasmadas no papel como retratos de viagem, podemos, e talvez devamos, lembrar-nos de que elas não foram feitas para acabar. Subjaz-lhes uma intenção de profundidade que não é mais do que maravilhamento pela indefinição da vida.

Cada quadro do André equivale a uma pergunta, uma pergunta que faz primeiro a si mesmo e o acompanha ao longo da criação, para depois ser remetida a cada um de nós. Uma pergunta de reverberação ontológica, um "quem sou eu?" aplicado ao momento artístico que cada trabalho corporiza. Um "quem sou eu?" de duplo sentido, na medida em que as respostas que tenhamos para essas perguntas se projectam tanto sobre o sujeito pintado como sobre o sujeito que o observa. E é por isso que a profundidade do André traduz um convite, um convite a que aprofundemos também o nosso olhar na relação com a pintura. Se à primeira vista podemos identificar a sugestão de uma figura como um referencial de sentido, a proposta do autor é a de que transcendamos esse instinto de defesa e procuremos outras formas de ver, de ir mais longe, de nunca parar, de nunca morrer. Eu gosto de ter o André como agente de viagens, sinto nele um companheiro em perspectiva, alguém que parte sozinho mas acredita na possibilidade de me encontrar, a mim e a quem mais, amando a dúvida, voar pelos pontos de fuga que os seus quadros oferecem, lá longe no fundo sem fundo da intemporalidade.